quarta-feira, 28 de abril de 2010

Foi cocaína

NEM COCAÍNA E MUITO MENOS AS CIGANAS - Foi cocaína? - Nauam. - Você precisa falar a verdade, nós vamos fazer um exame de qualquer maneira, mas eu preciso saber. Isso vai interferir na sua medicação. Foi cocaína? - Nauam porraaa. Reméudio para eumagrecer! - Que remédio? Eu sempre quis ser uma enfermeira por um dia. Por exemplo, poderia ser em um dia que eu estivesse afim de maltratar alguém. Para responder a pergunta dela pedi caneta e papel. Escrevi. “Minha senhora, o meu queixo entortou porque eu tomei dois comprimidos de fenoproporex e cinco de fluoxitina. Para que tudo descesse, eu bebi uma caipirinha, apenas uma caipirinha, que encontrei sendo feita por um rastafári. Você sabe que categoria tem essas cachaças. Acho que exagerei, se você me der plasil e gligose eu vou ficar melhor. Mas será que eu estou tendo um AVC?” Ela riu e saiu da sala de emergência. As pessoas passavam e me olhavam com o queixo torto.Eu não enxergava direito, por causa do efeito do metanol que deveria estar na cachaça. Maltido rastafári, eu confio neles por causa daquela filosofia paz e amor, reggae e maconha, parecem ser honestos. Mas agora sei que não devo confiar em pessoas que não tem residência fixa. É a lei da sobrevivência. Tampouco confio em ciganas. Eles andam pelo centro, com aquele papo; - Deixa a tia ler a tua mão? - Tá. - Hum, a tia tá vendo amiga falsa que quer amarrar a sua vida. A tia vê que ele te ama, mas que a amiga quer separar vocês. A tia vai rezar por você. Dá uma ajudinha pra tia? Dei cinquenta centavos e quando já estava no metrô dei falta do meu anel de prata. Não aprendi nada com a vida, se tivesse aprendido não tinha tomado a cachaça do hippie rastafári, batizada de metanol, não estaria nesse hospital com cara de hotel e muito menos com o queixo torto. - Olha você pode estar com um problema neurológico, por isso o desvio do seu maxilar. - Auvêcê? - Não é derrame. Mas aqui na emergência nós não fazemos exames mais profundos. Vou te dar 2ml de Valium, é um relaxante muscular. Eu escrevi. “Porque vai me dar diazepam, eu já me entupi de drogas para emagrecer e estou com o queixo torto, minha mandíbula dói. Porra.” Apaguei o porra e entreguei o bilhete a ele. - Você entende de remédios hein? Nem vou perguntar como sabe o nome genérico do Valium. Isso é a primeira coisa que eu posso fazer. Não vai ter mais problemas com você e muito menos com o seu queixo. Esse foi o dia em que eu apodreci viva. Eu não andava bem, tinha problemas com comida. Comia um rodizío de massas, tomava sorvete, enfiava o dedo na goela, depois comia um chocolate e ia dormir. Tive anemia, meus cabelos caíram eu fiquei feia, e agora estou aqui por causa da combinação “veneno de rato” que eu arrumei de um médico lá de São Gonçalo. O matador. Vinte reais a consulta, as gordas entravam e saíam do consultório, eu era mal vista, afinal era semi – gorda. O veneno que entortou a minha cara, deu tiuti. E se não voltasse ao normal? Eu ia dar beijos ao vento pelo resto da vida. Injetaram o Valium… Meu queixo desentortou, rápido. Faz dois meses que estou nessa clínica. Depois do incidente do queixo, fiquei com medo, vendi meu carro, saí fora do meu trabalho estressante e me internei. Aqui tem pessoas com vários vicíos, mas tem uma ala “Distúrbios Alimentares”. Fiscalizam o meu quarto, atrás de comida escondida. Não que eu não possa comer, posso comer o quanto eu quiser, aqui não é SPA, mas se comer muito, posso ter uma crise e tentar vomitar. Tenho cicatrizes nas mãos, de arranhar os dedos nos dentes, aliás perdi dois. Dois dentes, algo como acabar com o esmalte deles, aqui tem dentista, eles explicaram. Não engordei, mas também não emagreci. Ontem iniciou a semana da comida macrobiótica, uma merda, avisei que não ia comer. Aí acharam que eu também estava anoréxica. Veio o chefe da terapia ao meu quarto e eu tive de explicar que preferia feijão com arroz e tal. No final ele perguntou, teve a infelicidade de perguntar; - Tem mais algum problema querida? Drogas? Cocaína? Respondi que não tinha problemas com drogas e pedi gentilmente que saísse do quarto. Quando eu estava sozinha, pensei que a pior coisa era se entupir uma semana de comida macrobiótica e lembrei do dia em que virei uma compulsiva. O dia do mousse de maracujá, a sobremesa repetida quatro vezes. O resto são todos os fatos tristes que me levaram até aqui e que nunca foram e jamais seriam previstos pelas ciganas. 2006.

Dedicatória: dedicado aos que torcem o nariz e leitores do site

Publicado em 12/01/2010 05:03:45 - 392 leituras

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